Conto - Lágrimas de um rio
Conto - Lágrimas de um rio
Autor: Beto Rocha
Um velho ribeirinho ia descendo nas águas do rio Acre. Finalzinho de tarde e com seus olhos fitos no alto do céu avistou uma paisagem linda, parecia um quadro pintado por alguém que queria retratar um casamento perfeito entre o sol e o rio, ou o início de uma relação, acompanhada de um crepúsculo ao entardecer além do horizonte, que fascinava qualquer um que passasse naquele momento e contemplasse esse espetáculo da natureza, típico de um verão amazônico. As poucas águas do rio espelhavam com o contraste do sol. Ele carregava na proa da canoa o rancho que levava para passar a semana com sua família, depois de um dia cansativo de trabalho, vinha à cidade todos os dias, vender suas frutas e verduras na feira do mercado, voltava pra sua casa, sempre no final do dia.
Numa altura do rio, já distante da cidade, algo estranho aconteceu, as águas começaram a borbulhar, seguido de um barulho ensurdecedor, como se fosse um gemido de alguém com dor ou um pedido de socorro. As águas, de repente começaram a subir em forma de redemoinhos, cerca de 10 metros de altura e descia semelhante a queda de águas de uma cachoeira, respingando como lágrimas dentro da canoa do velho ribeirinho, molhando assim todo seu rancho. O movimento das águas o impedia de continuar seu caminho, então resolveu atracar a canoa na beira do rio. Cansado e atordoado, por nunca ter visto esse fenômeno acontecer, achava que estava delirando e disse:
- O rio está chorando!
Encostou a canoa na beira da praia, num pau enfiado na areia e ficou sentado, atônito, olhando para o rio. As águas continuavam a subir, se contorcendo pra lá e pra cá com gemidos inexprimíveis. Parecia ser uma forma de protesto pelo que estavam fazendo com ele.
O velho ribeirinho começou a se lamentar, porque sua consciência o acusava:
- Ele está morrendo! O rio está morrendo! Falou consigo mesmo. Nós plantamos tantas frutas e verduras, o que seria da nossa vida, de nossos filhos sem o alimento extraído da margem do rio? Cadê a melancia, o maxixe, o quiabo, o milho, o peixe? O homem do campo e as pessoas da cidade, o que será delas? Será o fim da nossa cidade ou será também o fim da humanidade?
A consciência do velho ribeirinho doía, pois sabia que também tinha contribuído para o coma do rio.
Passou algum tempo e o ribeirinho deitou na praia, esperando as águas se acalmarem, já que não dava para a canoa passar, pois poderia ser virada pelos banzeiros das águas.
Um forte grito:
- Estou morrendo, me ajude! O rio começa a pedir socorro para o velho ribeirinho. Tais gritos ninguém ouvia, a não ser o seu amigo maior, o velho ribeirinho. Parecia que ele, por ser o parente mais próximo do rio, tinha sido escolhido pela própria natureza, para levar o seguinte recado aos quatro cantos da cidade:
- Porque vocês estão me matando? Dizia o rio ao velho ribeirinho, tudo que eu tinha dentro e fora de mim dei a vocês. Ainda cansado e arrependido, o velho continua pensando na fartura, que o rio oferecia aos ribeirinhos há alguns anos! Enquanto o rio fala, o ribeirinho ouve e começa a passar um filme em sua mente, continua refletindo na beira da praia. Seu Manoel falava assim para os seus filhos: “Tião vai pegar água no rio pra fazer o almoço, menino, aproveita e vê se tem melancia madura!” “José, vai colher feijão e arroz!” “Raimundinho, traz o milho para fazer canjica e pamonha!” “Chiquinho, vai pescar, vamos ter visita nesse final de semana aqui em casa!”. Era sexta feira, muita fartura na casa de seu Manoel. Tudo isso tirado dos barrancos do rio Acre.
- Estou desidratado! Continua falando o rio. Tenho pouca água dentro de mim, estou morrendo de sede! Minhas veias estão precisando de água! Os igarapés que se formaram de mim estão poluídos com litros vazios de bebidas, garrafas de refrigerantes e sacolas cheias de lixo, inclusive coisas absurdas como fogões, geladeiras e até carros velhos. Os jovens amantes do rio não estão mais nem aí para mim. As dragas são verdadeiras drogas, estão tirando a areia dos meus pés, me encham logo de água limpa! Estou cansado, cheio de coisas velhas, não tenho mais força para lutar sozinho. Cadê meus peixes, meus jacarés, meus mandis, meus piaus, minhas piracemas, Cadê também meus botos, que até os garotos jogavam pedras neles! Não tenho mais vigor, sinto dor nas minhas entranhas, sei que estou morrendo! As árvores que firmam meu leito através de suas raízes, não existem mais. Nas minhas veias não correm mais nenhum sonho, desceram junto com os balseiros jogados por homens grosseiros. Eu preciso me encher de coisas boas de novo para alimentar meu povo.
O velho ribeirinho recupera-se e levanta, desperta aos poucos e faz a seguinte pergunta ao rio:
- Mas você não é um rio?
- Sim! Responde.
- Mas rio não fala, diz o velho.
O rio responde:
- Só você está me ouvindo, pois estamos distantes do barulho da cidade. Quero que você leve a seguinte notícia: “O rio Acre pede socorro!”
O anúncio circulou por todo o estado através de jornais, rádios e televisão. O Governo se sensibiliza e convoca toda população a comparecer às margens do rio e lá traçarem metas de ação para salvar o rio, pois juntos encontrariam uma solução. A comunidade inteira comparece, o Governador chega e começa o pronunciamento:
- Meus amigos, povo querido do Acre, estamos aqui para dizer que se existe alguém culpado pelo coma do rio, somos todos nós. Portanto, convoco todos a sair de suas casas e andar por toda extensão do rio limpando sua margem e o seu leito. Vamos, também, plantar árvores de ponta a ponta para conter o desbarrancamento. Peço também aos ribeirinhos que não joguem mais dejetos nas suas margens. Iremos proibir através de leis mais severas, que ninguém, em toda sua extensão derrame qualquer tipo de sujeira, sob pena de ser processado e preso imediatamente, sendo crime inafiançável.
Todos cumpriram com suas metas, fazendo exatamente como planejado. O Governador agradeceu a população por todo o empenho.
Passaram-se então dez anos e as pessoas se educaram e se sensibilizaram e não jogaram mais nada nas margens, nem dentro do rio porque agora havia um projeto dos mais audaciosos e sérios que já se ouviu falar. Foram criados sobre toda a extensão postos fiscais permanentes com câmeras de filmar de quilômetro em quilômetro do rio, monitorando todas as pessoas que se aproximavam dele. Havia, também, parques ecológicos, trilhas de passeios, eventos culturais de orientação sobre educação ambiental. Passeios de barcos cadastrados pela Marinha do Brasil, fiscalizados diariamente pelo Corpo de Bombeiros. Havia uma sintonia entre todos, em busca dos mesmos objetivos e propósitos. Agiam como se fossem uma música, sendo composta por uma verdadeira orquestra, as pessoas trabalhavam no mesmo ritmo, como melodia e letra rimavam perfeitamente, pareciam que já se conheciam há muito tempo. Mas tinham se visto pela primeira vez e já estavam apaixonadas, de tanta afinidade que tinham um com o outro, formando assim, um casamento perfeito, entre rio e homens.
Enfim, o resultado em poucos anos apareceu.
O rio agradece dando água de boa qualidade e todos foram felizes por longos anos.
DESABAFO: Esse é o meu rio, não somente meu, mas de todos aqueles que têm uma consciência ambiental com qualidade de vida, voltada para o bem comum de um povo. Esse é o rio dos meus sonhos. É o rio que eu quero para meus filhos e netos!